Como estão funcionando os postos de saúde Brasil afora? Fiscais dos Conselhos Regionais De Medicina saíram em busca dessa resposta. Visitaram mais de dois mil desses postos. E a situação é alarmante: falta remédio, falta equipamento. Às vezes, falta até estrutura. É essa a triste realidade que milhões de brasileiros enfrentam todos os dias.
O martírio de quem usa os postos de saúde no Brasil, muitas vezes começa antes mesmo da porta de entrada. Doze degraus separam a calçada da porta do posto onde pacientes com dificuldade de locomoção buscam ajuda.
“É difícil mas quem não tem tu, o que é que faz? Vai tu mesmo”, lamenta uma senhora.
O Fantástico entrou em diversos postos de saúde pelo país para mostrar a situação precária, caótica e escandalosa sofrida por milhões de brasileiros que dependem do atendimento do SUS – o Sistema Único de Saúde.
Nossa primeira parada é no estado do Rio de Janeiro. No município de São Gonçalo, existe um posto que não tem nem placa na porta.
“Parece uma casa abandonada. Ninguém diz que isso aqui é um posto de saúde”, diz uma mulher.
Na verdade, essa é só a primeira coisa que o posto não tem. Então, seja bem-vindo ao: Posto ‘não tem’. Paciente? Tem sim, doutor. Mas o resto…
Homem: Odontologia aqui não tem, não.
Fantástico: Há quanto tempo não tem raio-X?
Homem: Aqui tem mais de 2 anos.
Senhora: Os funcionários não têm água.
Fantástico: A senhora trouxe a água?
Senhora: Eu trouxe.
Mulher: Não tem água, não tem banheiro, falta mais médico.
Funcionária: Não temos enfermeira no posto. Não temos sala de medicação.
Fantástico: Você não consegue fazer um curativo aqui?
Funcionária: Não tem condição.
Fantástico: Tem uma seringa aqui?
Funcionária: Não tem nada. Não temos nada.
E para quem trabalha ali.
“Aqui tem caracterização de um pós-guerra. Parece que jogaram uma bomba e as pessoas retiraram e nós entramos para trabalhar”, revela uma médica.
Mas não é apenas no posto “não tem” que falta tudo isso. O Fantástico teve acesso com exclusividade a um levantamento feito pelo Conselho Federal de Medicina sobre a situação dos postos de saúde em todo o Brasil. E o diagnóstico não é nada bom.
Ao todo, 52% dos postos não tem negatoscópio, aquelas máquinas luminosas que o médico usa para ver o raio X. E 29% não tem estetoscópio. Em outros 32%, o que falta é aparelho para medir a pressão. E de cada quatro postos pesquisados, um não tem esterilização de materiais.
“O posto de saúde é um local de mais fácil acesso à comunidade, onde essa comunidade e os seus cidadãos podem ser atendidos em diagnósticos mais simples, em tratamentos mais simples e, se nós tivéssemos um sistema de atenção primária, ou seja de postos de saúde, onde a prevenção fosse eficaz, nós teríamos 80% dos casos da saúde resolvidos nesse sistema, evitando naturalmente a superlotação dos hospitais do SUS”, afirma o presidente do Conselho Federal de Medicina, Carlos Vital.
A segunda parada da equipe do Fantástico é no norte do país, no Pará. E tem uma coisinha que acontece nessa região, que todo mundo que vive aqui sabe bem.
“A chuva quando vem, vem do nada, a gente tem que estar preparada”, conta uma mulher.
Por isso que é ainda mais revoltante que nesse local, onde chove todo dia, a gente encontre o próximo posto dessa reportagem, que vamos chamar de: “Posto cachoeira”.
“Está correndo o risco de perder a medicação antes mesmo daquela validade que está escrita na medicação. Acaba sendo entregue uma medicação que a gente coloca em dúvida a sua eficácia”, afirma Jorge Tuma, do Conselho Regional de Medicina do Pará.
E os funcionários sabem bem porque a situação chegou a esse ponto. “Esse prédio tem 10 anos. Nunca foi feito nenhuma manutenção”, conta um funcionário.
No mesmo estado, só que agora na periferia da capital, Belém, encontramos o que seria o: “Posto mágico”.
Ao todo, 1,2 mil famílias são atendidas neste posto, mas nada é o que parece. A geladeira é estante. O freezer? Caixa de correio. A maca virou mesa e por último, o grande truque: a cozinha e o quintal se transformam em consultórios.
Enfermeira: Quando estão os médicos um dia eu atendo na sala e o médico atende aqui fora
Fantástico: Aqui fora onde?
Enfermeira: Aqui fora um dia é eu, um dia é ele. A gente reveza
Fantástico: Você já foi atendida lá na cozinha?
Mulher: Já. É bicho que está passando, a gente tem medo.
Fantástico: Que bicho você já viu ali dentro?
Mulher: Barata. É um constrangimento para gente que somo pobre. Tem tantas coisas que não são prioridade no nosso país, a saúde que tinha que ser prioridade não é.
Um outro posto tem um problema sério: ele fecha muito cedo. Então, poderia ser conhecido como: “Posto vapt-vupt”. Ao todo, 900 famílias dependem desse posto de saúde mas o atendimento lá…
Enfermeira: Aqui a gente começa 7h15.
Fantástico: E vai embora que horas?
Enfermeira: Aqui a gente fica até 12h, 12h15.
Dona Maria Carmen Carvalho mora em frente ao posto. Com 68 anos, precisa se cuidar. Tem pressão alta e diabetes. Por isso tem em casa tudo para não depender do posto de saúde e controlar a quantidade de açúcar no sangue.
“Tá alta. Agora eu tenho que tomar a insulina”, diz a aposentada ao medir a quantidade de açúcar no sangue.
Maria Carmen: O problema é que não tem quem me aplique. Eu não sei me aplicar.
Fantástico: Por que não procura o posto do outro lado da rua?
Maria Carmen: Porque só funciona de manhã.
Uma das opções para dona Carmem seria ir a outro posto, mas fica longe e não tem transporte público. E aqui, a situação também não é das melhores.
Um dia o povo não aguentou a falta de remédios e ameaçou agredir quem trabalha na farmácia. Assim nasceu o: “posto blindado”.
“Eu já fui quase agredida. Porque aqui era vidro e tinha esse buraco aqui era maior. Isso aqui é um papelão que nós botamos. Aí um senhor veio meio perturbado, não tinha o medicamento dele. Tinha um bocado de papel na mão, ele meteu, jogou na cara da outra minha colega que estava aqui sentada, a auxiliar, aí quis me pegar por aqui. Os meus superiores me pediram para cobrir para pessoa só pegar mesmo o medicamento e não olhar para cara da gente, só passar o medicamento e pronto”, conta uma farmacêutica.
Mesmo assim a falta de remédios continua.
“Anti-inflamatório infantil não tem nenhum”, diz uma farmacêutica ao paciente.
Esse é justamente o remédio que o filho do Seu Silva precisava. “Eu estava correndo atrás da galinha eu furei o meu pé no quintal. O prego estava no pneu, furei”, conta o filho de Seu Silva.
O pai, preocupado, levou o menino até o posto. O médico receitou o remédio. Mas: “apenas não tem. Só isso que eles dizem. Não tem e não tem. Tem que comprar, tem que desembolsar, com o pouco que a gente ganha. Na realidade eu tinha R$ 5 mas aí eu comprei o analgésico anti-inflamatório aí sobrou R$ 2 de troco e o mototaxi não quis levar por R$ 2. A corrida é R$ 3”, lamenta o cabeleireiro Benizaire Silva.
Fantástico: E você mora perto do posto?
Benizaire Silva: Eu moro cerca de uns 3 quilômetros. Eu me sinto constrangido, me sinto humilhado.
O que o Seu Silva não sabe é que ele pagou duas vezes por esse remédio. Quem explica isso é o professor Ricardo Gomes, da Universidade de Brasília.
“O dinheiro sai do bolso do Seu Silva em termos de pagamentos de impostos e esse recurso vai para a União, vai para o Estado e vai para o Município. Ele é encaminhado para financiar o Sistema Único de Saúde e esse recurso é gerenciado pelas prefeituras e ele vai ser aplicado no posto de saúde e uma pessoa que pagou o imposto tem o direito de ir ao posto de saúde e ter o seu atendimento realizado porque ele pagou os impostos e ele participou desse processo todo”, ressalta o professor.
Em Maceió, o posto está fechado para reformas, e assim, o povo precisou de ajuda divina. “Há uns quatro meses a gente está aqui nessa igreja, que doou para a gente espontaneamente, sem cobrar custo nenhum”, conta a dentista Adeane Loureiro. Este é o: “Posto dos milagres”.
Os médicos, dentistas e enfermeiros fazem seus atendimentos nas salas e corredores do templo, mas a falta de equipamentos impede diagnósticos mais apurados. O que resta é a boa vontade dos funcionários, à espera de uma luz.
“A gente não pode fazer mais do que a gente está fazendo. A gente vem aqui todos os dias, a gente vai, sabe da real situação deles, tenta encaminhar para outro canto, mas fica de coração partido porque não tem como fazer”, afirma a dentista Adeane Loureiro.
Também em Maceió, existe um posto que parece ter saído de historinha para fazer criança dormir. É o: “Posto faz de conta”
Todo posto de saúde precisa enviar ao Ministério da Saúde um cadastro com o seu número de profissionais, a sua estrutura e tudo mais que tem no posto. Esse cadastro é chamado de CNES, que significa “Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde”.
Nesse posto, o diretor administrativo faz de conta que tem tudo que tem no CNES. Faz de conta que tem raio X, que tem mamógrafo. E também faz de conta que tem 136 médicos trabalhando, mas na verdade só tem 63.
Fantástico: Quantos médicos tem aqui?
Cesar Oliveira, diretor administrativo: 63.
Fantástico: Esse aqui é o cadastro do CNES que eu imprimi ontem. Aqui está a data de atualização. Dia 2 de fevereiro. Está diferente do que você falou. Aqui diz médicos:135 profissionais.
Cesar Oliveira, diretor administrativo: 135 profissionais. Mas não tem isso tudo não. O CNES não está atualizado ainda.
Fantástico: Mas aqui diz que está atualizado no dia 2 de fevereiro.
Cesar Oliveira, diretor administrativo: Mas a gente não deu baixa. Em alguns médicos então não foi dado baixa.
Fantástico: Então mais da metade dos médicos já saíram e não está atualizado?
Cesar Oliveira, diretor administrativo: É.
O problema não é só o número menor de profissionais trabalhando. Há uma outra questão envolvida: a quantidade dinheiro que o governo federal repassa aos municípios.
“Você tem um controle de verbas que são repassadas da federação, da União aos estados e municípios e que são verbas repassadas com base exatamente nos números de profissionais que estão ali lotados, que estão cadastrados dentro do próprio CNES”, ressalta o presidente do CFM, Carlos Vital.
Em todos os postos que o Fantástico visitou nessa reportagem, o que estava no cadastro enviado ao governo não era o que de fato se via nos locais. Mas o Ministério da Saúde nega que o cadastro seja usado para calcular o repasse de verbas.
“Ele é um cadastro nacional de estabelecimentos. Isso que é o CNES. Ele não é base para o financiamento federal para a rede básica. Portanto ele não interfere na definição do financiamento federal para a rede básica”, destaca a secretária de Atenção à Saúde, Lumena Furtado.
Já a Controladoria-Geral da União, a CGU, afirma que sim, existe relação entre o cadastro do CNES e o repasse de verbas destinadas à atenção básica de saúde do governo federal para os municípios. Em 2014, a verba em questão foi de R$ 20 bilhões.
No meio desse disse me disse do governo, quem espera sofrendo é a população. E em uma comunidade, no interior do Espírito Santo, o povo ficou cansado de esperar.
“Vamos pegar, um pouco vem aqui vamos peneirar areia e quatro já vai mexendo aquela masseira lá e mais um pouco vão lá dentro começar a fazer o piso e botar a porta, tem que botar no lugar”, ordena um homem à um grupo.
O posto de saúde de lá mal saiu do papel. Há dez anos a prefeitura começou a construção. Cinco anos depois, o posto ainda não estava pronto e a obra foi abandonada.
“Aí a comunidade se reuniu e decidiu, ou vamos derrubar o posto ou vamos terminar ele. Aí optamos para terminar”, conta Edilson Gotardo, agricultor e organizador do mutirão.
Posto: “Faça você mesmo”
“Hoje a gente só tem o sábado para trabalhar porque a maioria do povo trabalha na roça aqui, de semana, então a gente se reúne no sábado. Nem tudo conseguiu doação, então eu já dei o cheque lá na barra, ele me deu uns dias de prazo, para gente poder estar juntando dinheiro, arrecadando para poder está pagando isso aí. A gente não desiste fácil não”, afirma Edilson, organizador do mutirão.
E esse lugar onde é o povo que usa as próprias mãos para construir um posto de saúde, tem um nome que serve de inspiração para todos: Distrito Novo Brasil.
“Então agora com o postinho a gente vai ver se consegue maca, essas coisas, para poder está sendo digno, dignidade”, completa Edilson, organizador do mutirão.
Procuradas pelo Fantástico, todas as secretarias municipais de Saúde responsáveis pelos postos mostrados nesta reportagem responderam por notas.
A Secretaria do Rio de Janeiro, responsável pelo posto que não tem rampa de acesso na entrada, disse que a reforma está programada para começar em seis meses.
Com relação ao posto que chamamos de “não tem”, a Prefeitura de São Gonçalo alegou que o que falta no posto está disponível em outras unidades do município.
A Secretaria de Marituba, no Pará, responsável pelo posto com goteiras, disse que o teto vai ser reformado.
Em Belém, estão os postos chamados de “mágico”, “vapt-vupt” e “blindado”, a prefeitura afirmou que instaurou procedimentos administrativos para apurar todos os problemas.
Em Maceió, a prefeitura afirmou que vai resolver os problemas no cadastro do posto chamado de “faz de conta”. Em relação aos funcionários que atendem em uma igreja, informou que as obras do posto onde eles deveriam trabalhar serão concluídas em até 40 dias.
E no Espírito Santo, onde a população constrói o próprio posto, a prefeitura de Governador Lindenberg afirmou que vai terminar a obra até o ano que vem e que os moradores não têm autorização para fazer o trabalho por conta própria.
Creditos : G1.globo.com/fantastico